Na mesma semana em que Donald Trump ameaçou impor um “tarifaço” de 50% às exportações brasileiras, assunto que incendiou o país, e governo e congresso disputam pela narrativa do IOF, volta-se a falar do bolso do brasileiro e é impossível não lembrarmos da “picanha e da cerveja”. São símbolos fáceis de narrar em ano pré-eleitoral; o Planalto os usa para ilustrar “vida melhor”, a oposição para acusar “vida cara”. Só que há um terceiro dreno de renda doméstica quase nada discutido nesses palanques: as bets.
O fluxo oculto
Dados enviados pelo Banco Central à CPI das Bets mostram que R$ 22 bilhões por mês saíram de contas de pessoas físicas para sites de jogo no 1º tri de 2025. Mantido o ritmo, o ano fechará perto de R$ 270 bilhões, volume que representa 84% de todo o varejo de carne bovina no país em 2024 (R$ 321 bi segundo o Anuário CiCarne).
Uma parte expressiva desse montante vem exatamente da verba “churrasco + litrão”. Pesquisa Datafolha/FGV com 2.600 domicílios revelou que 29% dos entrevistados admitem destinar parte do dinheiro reservado ao fim de semana para apostas digitais; 18% disseram ter reduzido compra de carnes ou almoço fora para manter a banca. Entre os que ganham até dois salários mínimos, o gasto médio declarado em plataformas de jogo é de R$ 87/mês, praticamente o preço de uma grelha simples para quatro pessoas.
Quem aposta e quanto pesa
Faixa de renda | % que aposta todo mês | Ticket médio mensal | Peso na renda |
---|---|---|---|
Até 2 SM | 38% | R$ 87 | 8,4% |
2-5 SM | 24% | R$ 118 | 4,2% |
5 SM | 17% | R$ 235 | 2,5% |
Fonte: Terra/MindMiners “Hábitos de Aposta 2025”
O Banco Central estima que 20% da massa salarial nacional passa por casas de aposta ao menos uma vez por ano. A adesão não é modismo isolado: o número de usuários ativos em três grandes plataformas (Bet365, Blaze, PixBet) subiu 62% no último ano, segundo a Sensor Tower. O APP Store Ranking Brasil de Abril de 2025 coloca dois apps de bet entre os cinco de finanças mais baixados; em 2021 não havia nenhum. Dados da PicPay Store mostram picos de depósito em bets às sextas (15h-20h), horário típico de compras de carne.
O Ibope Repucom rastreou R$ 1,1 bilhão em patrocínio de bets a clubes, programas esportivos e influenciadores nos 12 meses encerrados em junho, 40% a mais que o investimento conjunto de frigoríficos e cervejarias nas mesmas propriedades digitais.
Inflação comportada, churrasco estável — mas menos frequência
O IPCA de carnes subiu 6,7% nos últimos doze meses, abaixo do índice geral de alimentos (7,3%). Mesmo assim, o consumo per capita de bovinos continua 18% abaixo do nível de 2014. A Abrasmercado registra queda de 7% no volume de cerveja premium no primeiro semestre, diante de alta de 15% em vendas de créditos pré-pago para entretenimento digital — categoria onde se encaixam as bets. A brecha é temporal: quando o repasse chega ao açougue, parte do salário já foi convertido em boleto de recarga.
Os técnicos do IBGE, que pela primeira vez incluirão apostas on-line na Pesquisa de Orçamentos Familiares 2024/25, estimam (em nota metodológica) que o item aparecerá com peso inicial de 4,1% na despesa de lazer de famílias até 3 SM — muito próximo de cerveja doméstica (5,8 %) e carne para churrasco (6,3 %).
A promessa de “colocar carne no prato” continua politicamente forte, mas ignora que o dinheiro não está apenas sendo corroído por preço: ele está sendo realocado. Cada R$ 100 que vira múltipla 10x no celular não chega ao balcão do açougue nem à gôndola do supermercado. Economistas do Ipea calculam que cada ponto percentual de renda familiar transferido para apostas drena R$ 5,2 bilhões/ano do varejo alimentar e de bebidas.