LEMBRANÇAS DE VOLTA

Jovem recupera memória após ouvir música dos anos 80

Uma batida de bateria começa a tocar, e depois entra o teclado. Uma sequência de notas ressoa, até que o vocalista começa a cantar em inglês.

“Eu imaginei um arco-íris

Você o segurou em suas mãos

Eu tive visões

Mas você viu o plano”

Essa música atingiu um lugar profundo no cérebro de Thomas.

E quando a letra do hit dos anos 1980 da banda The Waterboys, The Whole of the Moon, surgiu nos fones de ouvido de Thomas, ele teve seis flashbacks em sequência.

Para este jovem de 30 anos, foi um momento extraordinário, pelo qual ele vinha esperando há uma década — desde que sua memória fora totalmente apagada, depois que ele sofreu um atropelamento. “Foi a coisa mais mágica da minha vida”, diz ele.
“Estava sentado em um estranho chão azul e podia ver um rádio prateado. Depois, eu estava em outro lugar e segurava a mão gigante de um homem (…) e depois logo veio outra memória.”

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Ele se lembrou de uma árvore de Natal enorme. “Havia uma mulher de pé, ela era jovem e estava sorrindo e não tinha cabelos grisalhos. Era minha mãe e eu era o seu filhinho. E era tudo real.”

Thomas imediatamente anotou essas memórias.

Ele precisava ter certeza de que eram reais, e não seu cérebro pregando peças nele. Poderia ser simplesmente outra manifestação de sua lesão cerebral? Ele já havia sofrido com mudanças de personalidade e prosopagnosia (também conhecida como cegueira para feições, em que uma pessoa não consegue reconhecer rostos).

Mas se os flashbacks eram mesmo reais, como será que seu cérebro conseguiu finalmente achar uma memória passada?

Já era noite e ainda havia muito movimento no centro de Londres quando Thomas Leeds se dirigiu à estação Green Park para pegar uma carona com seu pai. O jovem de 19 anos estava em um ano sabático antes de entrar na universidade e tinha ido encontrar um amigo.

Às 21h, ele atravessou a rua e foi atropelado por um carro.

O policial que testemunhou o acidente estava visivelmente traumatizado quando mais tarde contou o que havia acontecido.

Thomas foi jogado por cima do táxi que o atropelou e caiu de cabeça. A frente do veículo estava amassada, o capô destruído, o para-brisa quebrado e o teto côncavo pelo impacto de seu corpo.

O pai de Thomas, Anthony Leeds, correu para o Hospital St. Thomas depois que a polícia ligou dizendo que havia ocorrido um acidente.

Mas Thomas, ao que parecia, teve uma sorte extraordinária e escapou apenas com um pequeno ferimento na cabeça. “Havia muito pouco sinal de lesão além de arranhões e hematomas”, lembra Anthony. Na manhã seguinte, Thomas recebeu alta do hospital.

Nos dias seguintes, Thomas reclamou de náuseas, uma terrível dor de cabeça e dores nas costas. Quando o policial telefonou pedindo notícias, ficou chocado ao saber que Thomas havia recebido alta. Isso perturbou a mãe de Thomas, Jacqueline. “O sentimento do policial era de que ninguém poderia ter escapado ileso de algo assim”, diz ela.

Depois de ouvir isso, ela levou Thomas ao pronto-socorro e exigiu um exame. A ressonância revelou uma verdade “absolutamente chocante” — um coágulo de sangue havia se formado em seu cérebro.

“Ele estava a 24 horas da morte”, diz Anthony.

Thomas foi submetido a uma cirurgia para remover o coágulo. E quando ele voltou a si, na UTI (Unidade de Terapia Intensiva), disseram que seu comportamento era dócil.

“Tenho vagas lembranças de estar muito confuso, mas por incrível que pareça, não estava com medo. Não sabia como era ter medo”, diz ele. “Era como se fosse um bebê.”
Ele descreve que estava em uma “bolha emocional” — algo que a ONG Headway diz ser comum após um traumatismo craniano por causa do desequilíbrio químico causado. Isso pode até deixar o paciente se sentindo, surpreendentemente, contente.

Thomas gostou de receber visitas enquanto se recuperava. Embora os rostos parecessem familiares, quando lhe disseram que eram seus pais e seus cinco irmãos, ele não conseguia se lembrar deles.

Todos atribuíram essa confusão inicial aos efeitos da morfina.

“Ele andava e falava e isso para nós era bom o suficiente”, diz Jacqueline. “Era o máximo que poderíamos esperar, então não ficamos investigando nada. Todos nós presumíamos que Thomas estava bem.”

Mas quando voltou para casa, Thomas não se lembrava da sua própria casa onde vivia desde a infância.

As pessoas tentavam refrescar sua memória sobre o que ele tinha feito nos meses anteriores ao acidente, mencionando seus amigos e seus interesses.

“Eu realmente tentava me ambientar com todo mundo quando me contavam essas histórias”, diz Thomas, mas ele não se lembrava de nada.

Aos poucos, a família foi entendendo o que tinha acontecido — Thomas havia perdido todas as suas memórias anteriores ao acidente.

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Inicialmente, isso não o perturbou. Os primeiros anos se passaram enquanto ele se recuperava de três fraturas nas costas também sofridas no acidente. Ele diz que a “bolha emocional” continuou a protegê-lo.

“Eu imagino que seja assim que a maioria das pessoas se lembram dos verões da infância. Tudo era maravilhoso, tão vasto e ilimitado, e eu meio que me lembro — parece tão tolo — apenas de estar sentado no parque embaixo de árvores.”

Thomas teve sorte porque, embora não conseguisse se lembrar de seus dias de escola, ele manteve níveis básicos de leitura, escrita e matemática. Mas ele perdeu seu conhecimento cultural e referências — as coisas que estão no centro das conversas e dos relacionamentos.

E embora fosse capaz de criar novas memórias, sua personalidade também havia mudado. Isso é algo que uma lesão cerebral traumática pode provocar. Anteriormente, era mais frio e reservado, depois, afetuoso.

“Meu irmão não ficou feliz por eu ter sofrido esse acidente, mas ele disse, ‘Você é muito mais legal agora'”, brinca Thomas. Sua mãe, Jacqueline, também percebeu a mudança. “Ele é muito emotivo. Ele é muito aberto. Há algo de criança que não existe nas outras pessoas.”

Enquanto se recuperava, Thomas se perguntava sobre seu futuro.

Ele pensou sobre a vaga na universidade que havia assegurado antes do acidente. Ele planejava estudar design, mas quando viu seus desenhos, não estava mais interessado nisso.

“Aquele garoto que eu era não me parece mais real do que um antepassado. Você sabe que eles existiram e talvez tenha visto fotos deles, mas não parecem reais”, diz ele. “Nos primeiros anos, isso não me incomodava. Éramos todos tão jovens, então tudo girava em torno do ‘amanhã’. Mas, à medida que meus 20 anos iam embora, tudo passou a girar em torno do ‘ontem’.”

O futuro de Thomas havia estagnado. Enquanto isso, seus irmãos e amigos estavam agora na casa dos 20 anos e seguiam em frente com suas carreiras, casas e filhos.

“Ainda me sentia muito sortudo por ter feito tudo que fiz e apenas de estar vivo, mas ter que enfrentar a dura realidade do futuro sem ter um começo me parecia muito injusto.”

E também faltava algo importante em sua vida — amor.

Paquerar pela internet estava começando a se tornar algo mais comum em 2010, e Thomas se inscreveu em um site de relacionamentos. Ele conheceu algumas garotas, sem sucesso. O Natal se aproximava quando ele combinou de se encontrar com Sophie. Ela também era de Londres e tinha cinco irmãos.

Depois de contar a ela sobre sua situação singular, eles se encontraram para jantar e passear pelo West End, região boêmia da capital britânica. Eles se deram bem e planejaram se encontrar no dia seguinte. Quando se separaram, Thomas disse: “Sinto muito, mas não vou reconhecê-la amanhã.”

Houve outra complicação do acidente. Thomas tinha prosopagnosia, ou cegueira de feições. Isso significa que ele não consegue reconhecer ninguém fora de contexto, nem mesmo seus pais — e muito menos uma garota que acabara de conhecer.

Com a cegueira para feições, o cérebro é incapaz de reconhecer as variações nos rostos — o arco de uma sobrancelha, o ângulo de um dente, todos os detalhes que nos ajudam a identificar as pessoas.

Muitas das 1,5 milhões de pessoas no Reino Unido que têm essa condição nascem com ela. No caso de Thomas, o atropelamento danificou uma pequena área na parte de trás de seu cérebro responsável pela visão, reconhecimento e coordenação.

Ele aprendeu estratégias para reconhecer pessoas usando localização e contexto. Ele também consegue reconhecer uma pessoa ao ouvir sua voz. Mas havia algo diferente em Sophie. “Na semana antes de nos conhecermos, ela havia tingido seu cabelo de um vermelho brilhante, aquele tipo de vermelho bem louco. Ela era como um farol.”

Pela primeira vez em anos, Thomas foi capaz de reconhecer alguém na multidão, e ali começou uma história de amor.

Eles namoraram e se casaram dois anos depois. Logo em seguida, nasceu sua primeira filha, e depois outra. Sophie nunca parou de tingir o cabelo e ainda é a única pessoa que Thomas consegue reconhecer.

“Ela é incrível. Ela sempre me faz sentir que tem sorte de me ter. Isso me fez sentir muito melhor sobre o futuro.”

Dez anos depois do acidente, embora Thomas tivesse revisitado locais de seu passado e interrogado familiares e amigos, nenhuma de suas memórias havia retornado.

E então veio a descoberta surpreendente. Thomas fez a curadoria de uma playlist dos anos 80 em seu aniversário de 30 anos — música com a qual ele, dizem os outros, havia crescido. Na noite anterior à festa, ele foi para a cama e colocou seus fones de ouvido. Ele ouviu a playlist faixa por faixa e sabia todas as músicas de cor.

Ao chegar na faixa The Whole of the Moon, de 1985, que alcançou o número 3 nas paradas do Reino Unido, a música fez Thomas encontrar algo de seu passado.

“Isso realmente mudou tudo para mim”, diz ele sobre a série de flashbacks que teve.

“Foi muito curto, mas sabendo que foi real e que eu tenho isso na minha cabeça e que não é apenas uma história [que ouvi] ou apenas uma fotografia antiga … isso foi um pouco do meu começo.”

Para explicar a ciência por trás dos flashbacks, o neurologista aposentado Colin Shieff diz que as memórias são feitas de “pacotes de substâncias químicas” envolvendo várias dimensões, incluindo cheiro, paladar e tato.

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“Ela [a memória] só precisa de pequenos ‘químicos de memória’ flutuando para gerar um quadro um pouco maior”, diz ele. “Isso provoca uma cascata que vira uma visão.”

Após anos de tiros errados, os químicos no cérebro de Thomas finalmente acertaram uma memória.

Então a memória sempre esteve lá?

Shieff diz que a memória de longo prazo de Thomas provavelmente ainda está no seu cérebro, mas permanece fora de alcance, como se fossem arquivos muito mal organizados.

“Você pode ler um manuscrito de um livro e achá-lo maravilhoso. Mas se você deixar cair essas folhas e alguém pegá-las, essa pessoa vai se deparar com um conteúdo que não tem sequência. E algumas das páginas estarão um pouco bagunçadas e amassadas.”

Uma segunda onda de memórias aconteceu anos depois, quando Thomas viu um clipe do filme animado The Snowman no YouTube enquanto pesquisava referências da infância que havia perdido. As imagens e a trilha sonora desencadearam outra memória — a hora do almoço na cantina da escola.

“Foi o suficiente para me fazer sentir que tenho uma educação”, diz ele.

Shieff diz que “a recuperação pode continuar indefinidamente”, então há espaço para Thomas descobrir mais memórias. Mas não há nenhuma garantia disso.

Thomas passa seus dias em casa cuidando de suas filhas pequenas. Ele diz que “alguns dias são melhores do que outros”, mas pequenas coisas como correr no parque atrás dos filhos podem ser difíceis porque a cegueira de feições torna mais difícil para ele reconhecê-los.

Ele diz que os “anos vazios” às vezes o desanimam, mas suas filhas brincam nos mesmos parques que ele costumava brincar quando criança e ele está criando novas memórias com elas.

Outro legado do acidente é a epilepsia, e em “dias ruins” ele não pode sair de casa.

“O tecido da cicatriz do meu cérebro interfere nos sinais e é isso me causa convulsões. E isso parece estar afetando cada vez mais minha memória.

“Saber que posso perder o controle da minha consciência pode ser bastante assustador.”

Após uma convulsão forte — em que ele perde a consciência — ele perde temporariamente cerca de 10 anos de memória. A última vez que isso aconteceu, ele voltou pensando que estava em 2008.

“Eu não sabia quem era minha esposa, não sabia quem eram as crianças. Sophie me mostrou o alto-falante inteligente Amazon Echo e isso me surpreendeu.”

Agora ele até acha graça em tudo. A família tem o hábito de escrever esses episódios engraçados para que Thomas possa sempre lembrar deles.

Ele também se apaixonou por escrita criativa, um interesse que aparentemente compartilha com seu antigo eu de infância. Thomas escreveu uma aventura de fantasia para crianças de oito a 12 anos.

Seu protagonista, Jayben, tem epilepsia e acorda sem memória em um mundo de elfos. Ele é um herói sendo caçado e precisa recuperar sua memória antes de ser achado.

Ele preferiu escrever um livro infantil em vez de um livro de memórias, porque assim não estaria revivendo sua própria história. Ele diz que é terapêutico transformar a dor e a dificuldade em “algo novo e excitante”.

O livro é o primeiro de uma série e foi comprado pela The Good Literary Agency, agência que trabalha com autores que fazem parte de minorias com pouca representatividade no mercado editorial. Thomas diz que está animado com o próximo capítulo de sua vida. E enquanto sua escrita avança, ele ainda está tentando reconstituir sua história.

“Já se passaram 18 anos e eu sou essa pessoa. É lindo saber um pouco de quem eu era antes, mas eu já vivi tanto desde então.” E ele ainda valoriza aquele flashback de sua mãe no Natal.

“Só de saber que tenho algo real de antes, do início da minha história, realmente me ajuda a encarar o futuro.”

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